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60 ANOS

TERRA INCÓGNITA: 60 ANOS
APRESENTAÇÃO

Incógnita é o substantivo feminino que indica algo desconhecido ou ignoto e que se pretende conhecer. Esta palavra tem origem no latim incognitu, com o prefixo in (que indica negação), e cognitus (que significa algo que se conhece). Alguns sinônimos de incógnita são: mistério, problema, segredo, enigma, etc. (INCÓGNITA, 2020, grifado por mim).

       Este sítio eletrônico relaciona-se à exposição de mesmo nome em cartaz no Museu de Arte da Universidade Federal do Paraná (MusA), Curitiba, PR, de 5 de dezembro de 2023 a 1º de abril de 2024.

       Terra Incógnita: 60 anos é um trabalho processual em poética, orientado pela reflexão sobre as territorialidades implicadas na circunscrição espacial de três países da América do Sul por onde passei, desde que nasci: Brasil, Argentina e Chile. Relacionalmente, a proposta envolve uma territorialidade subjetiva de fronteiras incertas. (WRIGHT, 2022). O título é uma apropriação de uma expressão que tem uma longa trajetória histórica e geográfica. (NOVAES, 2023).

       Como bem definiu o geógrafo Rogério Haesbaert da Costa (2004), é muito mais producente se pensar no conceito de territorialidades – mais que isso, em multiterritorialidades que interagem em um mesmo espaço, em diferentes escalas, dimensões, e temporalidades –, do que se falar em território, categoria espacial fixa, academicamente inexorável. Dessa forma, é possível se considerar os aspectos físicos, político, jurídicos e administrativos, mas também os simbólicos, subjetivos, que habitam a memória e configuram determinadas coordenadas espaciais na construção da coexistência, ainda que isto se dê de forma imprecisa, precária e temporária. (MASSEY, 2008, p. 29). Territorialidade, território, (des, re) territorialização, são o caráter ou a face momentânea que o espaço pode assumir, a depender das discussões teórico-filosófico-artísticas na construção de uma determinada problemática.

 

[...] o ponto central do problema resume-se ao fato de que espaço, da forma como a ele estamos acostumados a nos referir, simplesmente não existe já que a categoria espaço tem se mostrado muito mais uma categoria da metafísica que da física (physis) propriamente dita. (SANTOS, 2002, p. 17).

 

       Não se pode esquecer, no entanto, que esta categoria, em alguns de seus contornos, implica sobretudo outra: poder. Em Sobre a violência (2022, p. 55-57), Hannah Arendt discorreu sobre os significados das palavras poder e violência: “O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas também para agir em concerto”. “A violência, como eu disse, distingue-se por seu caráter instrumental”. E, adiante, concluiu: “Poder e violência são opostos; onde um domina absolutamente, o outro está ausente. A violência aparece onde o poder está em risco, mas, deixada a seu próprio curso, conduz à desaparição do poder”. (ARENDT, op.cit., p. 66).

       Neste trabalho, é sobretudo esta relação entre poder, violência, espaço e memória que emerge como um vetor catalisador para muitas questões que me acompanham desde a juventude, mas que somente a maturidade e o estarrecedor contexto sociopolítico atual acionaram. Nascida em dezembro de 1963, quatro meses antes do golpe civil-militar de 31 de março de 1964 (ou 1º ou 2 de abril, dependendo do pesquisador consultado), vivi, da infância à entrada na vida adulta em 1985 – com o retorno do regime democrático –, sob a égide do regime ditatorial vigente no país, em Brasília, o epicentro do poder. Assim como para muitos da minha geração que viveram na cidade, naquele espaço-tempo, eu estava despossuída de elementos para uma tomada de consciência do que significava ter nascido e crescido nos anos de chumbo, como alienados que estávamos quase todos quanto ao terrorismo de estado, como alguém que se encontra na calmaria do olho de um furacão. Mesmo perto do fim do período dos governos militares, nessa cidade, ainda não se podia, não se queria, não era de “bom-tom” (para não dizer perigoso) se falar sobre o contexto sociopolítico e seus deletérios e terríveis efeitos, mesmo nos cursos de graduação da Universidade de Brasília (UnB). Existia um imaginário coletivo sobre fatos e eventos assustadores que vinham acontecendo de forma clandestina no país, sempre desmentidos ou ignorados, de forma ostensiva, pela propaganda do governo militar.

 

[...] O que foi escondido é o que se escondeu. E o que foi prometido, ninguém prometeu. Nem foi tempo perdido. Somos tão jovens. Muitos daqueles jovens já não existem. Exterminados pela Aids ou silenciados pelo êxito midiático, abandonaram de muitas maneiras a cidade que instigou sua rebeldia. Em Brasília, hoje, nada se passa, apenas se traçam os destinos do país. A cidade que foi, num primeiro momento, promessa de futuro, depois símbolo do poder ditatorial e, finalmente, memorial de si mesma, resiste, apesar de tudo, habitada por forasteiros nostálgicos para testemunhar, talvez, que “o futuro não é mais como antigamente”. (MELENDI, 2017, p. 303-304).

 

       Nesse período, realizei a minha primeira viagem ao exterior, à Argentina, entre os anos de 1983 e 1984, exatamente no momento histórico em que este país estava começando a purgar os fantasmas dos porões do último regime ditatorial (1976-1983) que, então, começaria a pagar por seus crimes. No entanto, durante um mês de permanência em Buenos Aires e região metropolitana, passei incólume e alienada em meio às mazelas causadas pelos governos militares aos cidadãos argentinos. Mais tarde, voltei à Argentina e também viajei ao Chile, em mais de uma oportunidade, com outro nível de consciência e propósitos. A partir de então, por interesse próprio, comecei a buscar informações sobre o período de horrores que engolfou a América do Sul, e, com o passar do tempo, passei a existir de uma forma renovada, tornando-me a cada dia mais consciente de toda esta Terrae Incognitae.

       Considerando as semelhanças, mas ciente de que existem particularidades de como cada uma das sociedades desses territórios-nações trata o período de seus respectivos governos militares, do ponto de vista conceitual, optei por pensar esses territórios por onde transitei como uma espécie de região, uma circunscrição em que as fronteiras físicas espaciais, mas principalmente as demarcações simbólicas são borradas, sobre a qual determinadas narrativas negacionistas acerca desse período histórico engendram-se, violentamente, para prevalecer.

       As mazelas e o modus operandi gerados durante o período militar, especialmente nesses lugares, alcançam a história hodierna na forma de repressão de forças de segurança a manifestações populares legítimas e execuções sumárias, supressão de direitos e liberdades, censura, genocídios, aviltamento de princípios constitucionais, ampliação da corrupção sistêmica, endividamento econômico e aprofundamento das diferenças entre ricos e pobres, desrespeito ao meio ambiente, entre outros aspectos. No Brasil, não há dados suficientes e precisos sobre o número de vítimas dos governos militares, porque foram propositalmente destruídos ou porque não são confiáveis, quando eventualmente apresentados por órgãos governamentais. Metaforicamente, aproximo este contexto à figura sideral de um buraco negro, espaço ignoto.

       Assim, do ponto de vista conceitual e simbólico, entrelaço a minha existência às de contemporâneos desta Terra Incógnita que eu não tive a chance de conhecer, pelo fato de que foram vítimas de desaparecimentos forçados, de tortura e de assassinatos políticos. As linhas de suas vidas foram cortadas, antes que pudessem ser urdidas com outras linhas, com a minha. Do ponto de vista formal, aqui, a linha (BOURRIAUD, 2011; 2009) é a unidade que conecta os invisíveis, os ausentes, àqueles que têm a vitalidade, o poder e o dever de cultuar a sua memória e de admirar a coragem de terem se levantado contra a tirania e o reacionarismo, lutado pelas liberdades de diferentes naturezas e se colocado contra o corte histórico que foi imposto ao curso das democracias do Cone Sul. A evocação de suas vidas se dá pela anima da escrita de caráter performático, de modo que, mais uma vez, sejam lembradas.

 

A escrita, segundo tempo do espírito, é co-extensiva ao território e à mercadoria – outros espaços antropológicos estruturantes, além da Terra. A escrita é uma das tecnologias intelectuais mais expressivas da ecologia cognitiva humana, tendo arrastado consigo milênios de hegemonia organizadora dos poderes e saberes das civilizações. Em uma analogia forte de significações, a escrita é correlata da agricultura enquanto tecnologia de sedentarização, fixação e separação. A escrita desterritorializa a fala, separando-a do corpo vivo e, ao reinscrevê-la em um suporte inerte, a sedentariza. (LÉVY, 2003: 142)[1]. Mas, no mesmo ato, produz outros deslocamentos, pois sua velocidade se acelera, ganha ritmo histórico do arquivamento e do controle das informações, doravante submetido ao jogo infinito dos poderes de estabelecer a significação “verdadeira” ou a autoridade que decide sobre a origem e a destinação dos homens. Costuma-se chamar essa prática de interpretação e ela passa a ocupar lugar preponderante no processo de comunicação. (ARAÚJO, 2011, p.140).

 

       A comunicação, a reflexão, a interpretação, o debate e o diálogo são importantes fios condutores desta proposta que não se restringe a um trabalho artístico pessoal, mas que se articula a um esforço conjunto de muitas pessoas mobilizadas por diferentes aspectos da efeméride que ora é invocada, a saber, os 60 anos do golpe civil-militar brasileiro e seus desdobramentos sociopolíticos no presente, dentro e fora do país.

       Neste espaço, onde mais linhas – escritas, desenhadas, de narrativas verbalizadas, moventes, inscritas nos corpos, histórico-geográficas e de vida – são convidadas a se apresentar e a se pronunciar sobre aqueles que lutaram contra as injustiças e o autoritarismo, em favor de estados laicos, da diversidade, da pluralidade, da igualdade e de regimes democráticos, abre-se lugar para que sejam lembrados e reverenciados por sua coragem e desprendimento. Que para honrar sua memória, mais pessoas não se calem, ajam e levem a sua luta e legado adiante, para muito além desta Terra Incógnita.

 

Tânia Bloomfield

 

[1] LÉVY, Pierre. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 2003.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Rosane Azevedo de. A cidade sou eu. Rio de Janeiro: Novamente, 2011.

ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2022.

BOURRIAUD, Nicolas. Radicante: por uma estética da globalização. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

COSTA, Rogério Haesbaert da. O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 395 p.

INCÓGNITA. In: SIGNIFICADOS. Disponível em: https://www.significados.com.br/incognita/ Acesso em: 06 fev. 2020

MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MELENDI, Maria Angélica. Estratégias da arte em uma era de catástrofes. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017.

NOVAES, André Reyes. A Terra Brasilis como Terra Incógnita. Disponível em: https://revistacarbono.com/artigos/01a-terra-brasilis-como-terra-incognita/ . Acesso em: 19 out. 2023.

SANTOS, Douglas. A reinvenção do espaço: diálogos em torno da construção de uma categoria. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

WRIGHT, John K. Terrae Incognitae: o lugar da imaginação na geografia. Geograficidade, v. 4, n. 2, p. 4-18, 2014. Disponível em: https://periodicos.uff.br/geograficidade/article/view/12896 . Acesso em: 11 set. 2022.
DOI: https://doi.org/10.22409/geograficidade2014.42.a12896

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