Carta 01

       17 de agosto de 2022.

        Oi, pai.

        Teste. Estou escrevendo hoje para te dar os parabéns pelo teu aniversário. Como um exemplar leonino, você não faz muito jus à fama astrológica que acusa o filho deste signo de sempre querer estar na mira de todos os olhos. Por pouco, não me lembrei da importância deste dia. De fato, por mais que eu me esforce, não consigo reter na memória as comemorações dos teus aniversários passados, nem dos cartões e presentes que eu certamente devo ter feito em tua homenagem. Deve ser porque considero a discrição como uma de suas mais marcantes características. Os teus silêncios te definem. Eu poderia até dizer que penso em você como um dos mais queridos desconhecidos da minha vida, dadas as lacunas que não consigo ocupar com o que você pensa e sente, acerca de diferentes assuntos.

        Envergonhada, devo confessar que me lembrei do teu aniversário, ao ler uma notícia no jornal que dá conta da morte de uma das figuras mais famigeradas do período da ditadura civil-empresarial-militar do país, ocorrida na madrugada de hoje. Trata-se do Major Curió, aquele envolvido no massacre do Araguaia e, mais tarde, no abominável, destrutivo e caótico projeto de extração mineral em Serra Pelada (PA), em que as violências social e ambiental que se desenrolaram ali podem ser tributadas, em muitos graus, a esta criatura desprezível. Você tomou conhecimento disto? Quando vi a data no jornal, um lampejo fez que eu relacionasse a sua data de nascimento com a morte dele. Afinal, entre vocês dois há uma diferença de idade de apenas quatro anos. Eu fiquei pensando sobre o porquê desta relação entre estes dois eventos, justamente na data de hoje. Talvez, porque fiquei sabendo que ele morreu no Hospital Santa Lúcia, na Asa Sul, em Brasília. Se você estivesse de plantão neste hospital e ele fosse seu
paciente, como você estaria se sentindo?

        Em meu devaneio, gosto de pensar que ele morreu porque estava assistindo, pela TV, em seu provável quarto aconchegante e privativo do hospital, a posse do ministro Alexandre de Moraes, que se tornou presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ontem à noite. A sua morte deve ter sido cercada de cuidados e analgesia, coisa que ele não concedeu àqueles que foram torturados sob o seu comando. Em seu discurso de posse o ministro foi extremamente claro, firme e contundente quanto à defesa da democracia, dirigindo duras palavras aos criminosos que estão nos ameaçando com um novo período de horrores, injustiças, tortura, execuções, corrupção, desamparo, falta de políticas socioculturais, supressão de direitos e todas as formas de violência – física, psicológica e simbólica –, que foram capazes de perpetrar no passado e que prometem repetir, como parte essencial de seu projeto de poder neofascista. Estes tentam abrir,
com os dedos ainda sujos por décadas de iniquidades, feridas mal suturadas
desde 1985.

        Desculpe-me pela franqueza, ao mencionar esta relação que estabeleci no dia de hoje, mas você me conhece. Espero que você não fique chateado. Pensei que pudéssemos conversar sobre a sua impressão do que estou relatando. Se você estiver pensando e se sentindo como eu, então, o seu aniversário está sendo marcado por um bom augúrio, para nós e para o país, porque, hoje, este curió soltou o seu último canto, há muito postergado. Como alguns costumam dizer,
“que a terra lhe pese”.

        Feliz aniversário, pai.

        Beijo.