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06 de abril de 2023

Oi, pai.
Sabe o que eu ganhei hoje de presente da minha amiga Caroline S. Schroeder, assim, sem mais nem menos? O livro “Carta ao pai”, de Franz Kafka. Imagine a minha surpresa e encantamento desencadeados pelo presente recebido, por dois motivos: por desconhecer a existência deste livro e pela sincronicidade deste acontecimento com a série de cartas que venho escrevendo para você. Você sabe como eu adoro me deixar levar por este tipo de “entrelaçamento quântico”. Já leu o livro?
Neste livro, Kafka dirige-se ao pai, tentando dizer a ele tudo aquilo que não havia sido capaz de fazê-lo pessoalmente. Apesar de algumas investidas, a carta nunca chegou ao destino. Em muitos trechos, ele deixa claro que o pai era uma figura despótica, de hábitos peculiares inamovíveis, no pior estilo “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Entre eu e você nunca foi assim. Pelo menos, não que eu me lembre. Nós sabemos como a memória pode ser traiçoeira e sempre nos flagramos arquitetando idealizações gasosas.
Eu me lembro de como gostava ainda mais de você, quando, no caminho de volta para casa, você virava o volante no instante decisivo em direção à banquinha de revistas da SQS 108 e nos levava para comprar livros de estória que continham discos pequenos, transparentes e coloridos, para serem ouvidos na vitrolinha Phillips que você me deu no aniversário de cinco anos. E o que dizer das vezes em que você estacionava na frente da padaria e, além dos pães, levava ao carro algumas guloseimas escondidas nos bolsos, somente para criar mais alguns minutos de felicidade em nossos raros dias na tua companhia? Você sempre foi um mestre na tarefa de fazer derreter a ansiedade de noites maldormidas à tua espera dos plantões nos hospitais ou das viagens a trabalho, estendendo a emoção do reencontro com alguma maravilha de além-casa.
Mas não esqueço da angústia causada por uma brincadeira que você fazia recorrentemente conosco, da qual a mãe era conivente, e, mesmo com a minha pouca idade, no fundo, sabia se tratar de um jogo malvado. No fim, sempre acabava bem, porque nós três voltávamos sãs e salvas para casa sob a proteção de vocês dois. Você lembra quando, nos finais de semana, vocês nos levavam para passear no VW Fusca que tinham na época, para passarmos o dia no meio do Cerrado ainda intocado e à beira do Lago Paranoá, lugar onde proliferou o atualmente conhecido bairro Lago Norte, em Brasília? Após um dia de dispersão pelo campo, assustando e sendo assustadas por bacuraus camuflados como pedras no terreno, coletando dezenas de cristais de quartzo brilhantes e mágicos que afloravam em abundância da terra, cansadas pelo esforço despendido na acumulação de riquezas que vocês nunca nos deixavam levar para casa, nós três, voltando “à base” onde supostamente vocês dois estariam nos esperando para ir embora, descobríamos que o carro já não estava mais lá. Na primeira vez que vocês fizeram isso, o mais puro e devastador sentimento de abandono foi preenchendo aquele corpinho esquálido, articulado por joelhos, mãos e cotovelos ralados de tanto tropeçar e cair na tentativa de seguir o rastro deixado pelos pneus no cascalho. Em todas as vezes, muitos minutos se passavam, até que o barulho do motor do carro começasse a ser percebido ao longe novamente. Aos ouvidos infantis, o motor soava de maneira muito distinta, dependendo da posição que o corpo ocupava, dentro ou fora do carro. Aguçar os sentidos: mais uma lição a ser aprendida, imagino. Àquela altura, duas de nós três já estavam aos berros que, por muito pouco, também não me contagiavam. Mas, eu não, nunca cedi ao medo que João e Maria expressaram no tétrico conto de fadas, cuja capa do livro trazia um holograma hipnótico, maravilhosamente ilustrado em seu interior, mostrando uma casa feita de doces e um baú de tesouros, que você também me deu de presente à época. Eu sabia que, em parte, aquele jogo poderia ter algo a ver com o treino para nunca transpirar fraqueza. Ou, diferentemente, será que se tratava de uma estratégia para aprofundar os votos de confiança inexoráveis que deveríamos depositar em vocês dois, desde a mais tenra idade?
Ao recordar isso, fico pensando se aquele didatismo cruel fazia parte de um programa educativo parental para nos fortalecer diante da vida. Ao contar isso a alguém, a reação é invariavelmente de horror e incredulidade. No entanto, apesar daqueles minutos intermináveis de expectativa sobre o que o futuro próximo me traria, penso que você me ajudou, talvez de uma forma questionável para muitos, a forjar ferramentas para lidar com situações de grande estresse pelas quais passei. Igualmente, acabou por talhar um dos motes que me acompanhou em grande parte da minha vida: no fim, tudo dá certo. Por décadas, este foi um dos meus preferidos. Hoje, um resquício de otimismo ainda vibra. 
Fique bem, pai. Eu estou.
Beijo,
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